quarta-feira, 6 de abril de 2011

fui

Fui de sonhos em sonhos e não enxerguei mais a hora de acordar. Nada como aprender a viver como se dorme.
Fui pelo caminho estreito, só que desta vez sabia que iria para onde queria.
Fiz uma pausas pra pensar. Não adiantou. Levantei, amarrei os cadarços e fui. Fui para onde já estava.
Galopei mil milhas em trote largo no escuro. Cada passo uma friozinho na barriga.
Corri, mas não me cansei.
Chegará o dia em que simplesmente chegarei e quando chegar já terei partido.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A janela




Pulou o muro. Não resistia. Não resistiu. Não conseguia passar por ali todo dia e não olhar pra dentro.
A noite sonhava com o muro. A tinta descascada e a janela. Logo ali. Assim, tão perto. Tão pronta para ser espiada.
As cortinas sempre fechadas. Mesmo à noite. Mesmo no calor do verão. Não conseguia olhar pra dentro.
Uma vez só passara na frente da janela e a vira. Os cabelos soltos. A pele solta. Nada envolvendo a pele. Nada....
Não conseguia mais dormir. Pensava, sonhava com o muro e a janela e a cortina fechada e o vulto que vira e não sabia de onde vinha tanta angústia, tanta inquietação.
Suava frio. Não sabia o que era: “Ai, que aflição. Ai, que vontade de ver novamente. Nem que por um segundinho só. Ai, que eu me mordo, ai, que eu me mato, ai, que eu me morro de tanto pensar.”
Não aguentou. Pulou o muro.
Transpassar aquela barreira de tijolos foi transpassar o limite que encarcerava toda a liberdade. Os passos do muro à janela, cautelosos e temerosos, foram o alívio desafogador da alma: ali estava o que pelo qual tanto transpirara. Ali, sentada na cadeira. Olhos fechados. Pernas levemente abertas deixando o ar refrescar por entre as coxas. E ficou ali a olhar. Como é bom realizar o que se quer.



foto: Gui Zawa

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Velha nosferata

Boca enrugada. Toda enrugada. Mais nos cantos. Anos de azedume e casmurrice fizeram um vinco profundo na pele de dona Pietra. Uma espécie de sorriso ao contrário, que fazia com que ela parecesse carrancuda mesmo sem retesar um músculo sequer.
Quando sorria, bem, quando sorria, ninguém sabe como ficava. Há tempos ninguém via sorriso em dona Pietra. Argumenta-se mesmo que dona Pietra fora um bebê que nunca sorriu. Patologia crônica, mas não identificada no meio em que viveu quando bebê: Curitiba.
Dona Pietra não tinha só vincos na boca, mas no corpo e nos trejeitos também. Era pálida. Pouco sol entrava na cobertura que morava. Tinha olheiras profundas. Resultado de madrugadas acordada acompanhando leilão de jóias pela televisão. Quando andava arqueava um pouco a coluna e levava a bolsa nos braços semi dobrados logo a frente. Quando se vestia com vestido preto parecia com algum dublê de filme de Herzog.
Os outros vincos, os mais profundos, se formaram em algum período entre sua infância e adolescência, quando a pompa em que vivia, sendo filha de militar de alta patente, começaram a marcar idelévelmente seu cérebrozinho, convencendo-a de que era melhor que as outras pessoas. Não todas. Apenas melhor que suas amigas, que a familia das amigas, que os vizinhos, que a familia dos vizinhos e, em especial, que qualquer um que estivesse no mundo para servi-la em algo: garçons, faxineiras, taxistas. Dona Pietra fora influenciada pelo que ainda havia da ideologia iluminista que sobrevivera aos séculos sendo sussurrada ao pé da orelha entre pais e filhas: Tais serviçais estavam no mundo para, além de servi-la, corroborar o fato de que ela nascera para ser servida.
Outro dia, Dona Pietra colocou vestido preto e foi ao shopping. Entrou em uma joalheria como se fosse vulto lúgubre, a anunciação cadavérica de alguém que já estava morto, mas tinha apenas esquecido de ir às catacumbas. Foi atendida pela funcionária solícita e bem humorada que prontamente lhe mostrou os melhores metais da casa. Não é que dona Pietra não tivesse gostado das jóias. Fora o sorriso feliz e desprentensioso na atendente que a fez sentir asco. Não sabia bem o porquê. Nada pior para um santo do que um pecador feliz. Aquele sorriso inojou a velha senhora que largou sobre o balcão uma corrente de ouro que segurava nas mãos e saiu porta à fora com cara de nojo pior do que a costumaz. A atendente sem entender nada pasmou e, olhando a imagem de dona Pietra, seus jeitos, suas roupas, os vincos na boca, teve uma epifania que se transformou em verbo assim que lhe veio à mente um antigo filme de vampiro que a tinha assustado quando criança: Velha nosferata! Falou baixinho para si mesma.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O inferno

No inferno não há mais nada para beber do que coca-cola diet quente. Não adianta perguntar. Só mesmo Coca-cola diet quente. E se fizer um poço, advinha o que jorra? Coca-cola diet quente.
No inferno todo banheiro está ocupado. É só dar vontade e pronto, alguém já entrou antes de você. E o tamanho das filas é diretamente proporcional à vontade de se ir ao banheiro.
É para o inferno que vão todos os maiores chatos do mundo: comunistas ultrarrevolucionários, eco-chatos, testemunhas de jeová. Todos querem te converter, ou te falar sobre ecologia ou te chamar pra uma passeata no domingo às 6 horas da manhã de domingo.
E quando se tira o telefone do gancho no inferno? É um serviço de telemarketing vinte e quatro horas. Sempre tentando te vender coisas muito úteis como uma assinatura de jornal editado em javanês. A diferença é que o telemarketing do inferno só toca quando você finalmente entra no banheiro ou quando se está tendo um ataque cardíaco. E não adianta deixar o telefone fora do gancho, pois de dez em dez minutos toca na sua campainha um vendedor de enciclopédias. É assim o inferno. O quê? O prezado leitor já teve um domingo assim? É. Domingo é pior que o inferno. Domingo tem Domingão do Faustão.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Só você mesmo

Queria ser prostituta. No seu íntimo mais interior. Queria ser prostituta. Era obsedada por este pensamento. Até que, por recomendação de um novo psicanalista homossexual que insistia que todos deveriam dar vazão à todo e qualquer impulso, resolveu ser uma. Entrou em um site com catálogo virtual de meninas de programa. Viu as fotos. As poses insinuantes. Era muito mais bonita que muitas ali. Pensou consigo mesmo que poderia ter uma foto também. Procurou um telefone de contato no site. Não achou. Ligou, então, para uma das meninas, pediu orientação de como ter suas fotos inseridas no site. A moça do outro lado da linha não foi muito solícita, mas acabou dizendo um nome e um número. Ela escreveu em um pequeno papel, mas não teve coragem de ligar. O papelzinho ficou na porta da geladeira por algumas semanas. Até que tomou coragem e ligou. O homem ao telefone marcou um encontro em um café. Culto e refinado tratou-a como uma princesa. Embora só quisesse conferir o material. Teste aprovado. Marcou para aquela mesma semana uma sessão de fotos. O fotógrafo disse que faria em sua casa mesmo. Ela não poderia deixá-lo ver o padrão social que ostentava, por isso, ao invés disso, marcou em um motel na rodovia na saída da cidade.
Sentiu-se muito bem fazendo as fotos. Um frisson. Um arrepio.
Ficou linda nas fotos. Era linda. Na mesma semana as fotos estavam na internet. Ficou admirando suas fotos on-line. Um sentimento de arrependimento começava a lhe assombrar, porém. Tinha comprado um celular só para as chamadas da nova profissão e também específicado o horário de atendimento: das nove da noite até às duas da manhã.
Ás nove horas e doze minutos de uma terça feira em que tinha recém saído da academia recebeu a primeira chamada. Seu coração pulsou forte. Marcou na mesma noite na casa do cliente. Comprou roupas que combinavam mais com a profissão. Vestiu-as. Chamou o taxi. Entrou no taxi. Chegou à casa. Apertou a campainha. Ouviu passos vindo pela calçada do jardim. Eram de seu cliente. Neste momento gritou para si mesmo: Meu Deus, onde estou com a cabeça? Depois saiu correndo sem olhar para trás.
O psicanalista disse que não era pra ter ido tão fundo assim. As amigas chamaram-na de louca, mas riram muito dizendo para ela: Só você mesmo...

sábado, 17 de outubro de 2009

Daqui cinco anos

-Como você se vê em nossa empresa daqui cinco anos?
-Daqui cinco anos? Como você é convencido! Daqui cinco anos eu quero estar surfando na praia. Namorando sob a luz da lua. Comendo camarão fresco, bem longe desta porcaria de empresa, que, aliás, eu nem sei do que trata. O que é mesmo que vocês vendem? Placa de controle “single” o quê? Eu nunca tinha ouvido falar. Aliás, nem desta empresa eu tinha ouvido falar. Cara, me dá logo esse emprego para eu poder pagar a conta do celular! Além do mais, quem é que contrata para trabalhar em pleno janeiro, quando as praias estão bombando? Você não sabe que no Brasil nada se faz antes do Carnaval? Por que não deixam pra contratar em julho, quando esfriar e a praia estiver vazia?
-Então? Como você se vê?
-Eu me vejo como um gerente, senhor. O melhor vendedor de placas de controle “single stream” da região e à caminho de mais cinco anos de muito sucesso, pois há muito que almejo trabalhar com vocês.
-Ótimo. Espero que goste de estar conosco. Você começa segunda-feira.
-Perfeito. Estava mesmo querendo começar trabalhar ainda este mês.

Amargos morangos

Não sabia o que escolher. Pão italiano ou pão francês? Tantas coisas na padaria. Por que fazem padarias tão grande hoje em dia?Falou baixo para si mesmo. Não tinha pressa. A idade guardava certos privilégios como passar antes na fila. Baguete. Isso, seria Baguete. Quando estava saindo com a baguete na mão uma criança passou correndo e bateu em seu braço. Pão ao chão. Criança ao chão. Pai, logo depois: Filha, cuidado, padaria não é lugar de correr. Disse o pai erguendo a menina do chão. Senhor, me desculpe. Arrematou. Imagina, crianças são crianças. Acho melhor pegar outro pão para o senhor. Não se encomode.Voltou para o balcão e, encorajado por ter feito o caminho de volta, achou coragem para mudar de ideia: Uma torta de morangos. Não, inteira, não, moça. Metade. Não se chega nessa idade comendo assim. Sorriu com o canto da boca. A outra metade pode embalar para mim! Era o pai da menina novamente. Torta vai bem com esse frio do sul, não é mesmo? Ô se vai. Moça? Moça? Pode me dar outra igual? Sim. Inteira. Vou levar para o pessoal da corretora. Disse se virando para o agora conhecido desconhecido. O senhor trabalha com imóveis? Não. Na bolsa de valores. É mesmo? Trabalhei mais de trinta anos. Que bom, um veterano de profissão. Por favor, passe visitar meu escritório quando puder. Claro, por que não? Agora na aposentadoria tenho tempo pra tudo. Por favor, pegue o meu cartão. Seus olhos correram pelo cartão de visita: Euderico Rosser. O sobrenome ecou em seu inconsciente, tal como pedra em lago tranquilo, as ondas reverberavam em seus lábios: Rosser... Rosser... Rosser... Você é parente de Leco e Nina Rosser de Caxias? Sou! O pai da menina ficou surpreso. São meus pais! Desculpe-me, mas como se chama? O tempo parou. Lembrou dos cabelos da ex-noiva voando ao vento sobre o brilho do sol. Da família da ex-noiva. Das tortas de morango que a ex-sogra preparava há mais de quarenta anos. Estaria viva ainda? Lembrou do escândalo. Do golpe do banco. Dos nomes nos jornais. Da fuga de Caxias. Seria ele o irmão mais novo? Poderia ser. Não deve lembrar de mim, era novo demais. Lembrou mais da noiva. Do seu sorriso. E seu coração se alegrava de uma alegria triste e doída, saudoso de um tempo que a vida lhe privou. Que ele mesmo se privou. Que seus erros o privaram. Pensou em como a ex-noiva deveria ter se sentido quando fugiu para o nordeste no meio da madrugada. Nunca mais teve notícias. Lembrou das tardes sob o parreral na casa do ex-sogro e de um menino sentado em seu colo com os mesmos olhos deste senhor que agora lhe falava. Desculpe, como é o nome do senhor? insistiu o pai da menina. Hã... ah, meu nome é Mateus. Senhor Mateus, o Senhor conheceu meus pais? Não. Só de passagem. Não devem mais lembrar de mim. Pois eu acho que sim. Apesar da idade teem a memória muito boa. Deixe estar. Já faz muito tempo. Está certo. Bem, um bom domingo para o Senhor, Senhor Mateus. Bom domingo para você, Euderico e para você também, pequena.
Naquela manhã foi para casa e comeu uma torta de morango sem gosto, enquanto olhava a parede mofada da cozinha. Sozinho. Mastigava com força os morangos, na esperança de triturar junto com as frutas, lembranças desagradáveis e dolorosas que pensava já ter digerido há muito.