segunda-feira, 26 de abril de 2010

Velha nosferata

Boca enrugada. Toda enrugada. Mais nos cantos. Anos de azedume e casmurrice fizeram um vinco profundo na pele de dona Pietra. Uma espécie de sorriso ao contrário, que fazia com que ela parecesse carrancuda mesmo sem retesar um músculo sequer.
Quando sorria, bem, quando sorria, ninguém sabe como ficava. Há tempos ninguém via sorriso em dona Pietra. Argumenta-se mesmo que dona Pietra fora um bebê que nunca sorriu. Patologia crônica, mas não identificada no meio em que viveu quando bebê: Curitiba.
Dona Pietra não tinha só vincos na boca, mas no corpo e nos trejeitos também. Era pálida. Pouco sol entrava na cobertura que morava. Tinha olheiras profundas. Resultado de madrugadas acordada acompanhando leilão de jóias pela televisão. Quando andava arqueava um pouco a coluna e levava a bolsa nos braços semi dobrados logo a frente. Quando se vestia com vestido preto parecia com algum dublê de filme de Herzog.
Os outros vincos, os mais profundos, se formaram em algum período entre sua infância e adolescência, quando a pompa em que vivia, sendo filha de militar de alta patente, começaram a marcar idelévelmente seu cérebrozinho, convencendo-a de que era melhor que as outras pessoas. Não todas. Apenas melhor que suas amigas, que a familia das amigas, que os vizinhos, que a familia dos vizinhos e, em especial, que qualquer um que estivesse no mundo para servi-la em algo: garçons, faxineiras, taxistas. Dona Pietra fora influenciada pelo que ainda havia da ideologia iluminista que sobrevivera aos séculos sendo sussurrada ao pé da orelha entre pais e filhas: Tais serviçais estavam no mundo para, além de servi-la, corroborar o fato de que ela nascera para ser servida.
Outro dia, Dona Pietra colocou vestido preto e foi ao shopping. Entrou em uma joalheria como se fosse vulto lúgubre, a anunciação cadavérica de alguém que já estava morto, mas tinha apenas esquecido de ir às catacumbas. Foi atendida pela funcionária solícita e bem humorada que prontamente lhe mostrou os melhores metais da casa. Não é que dona Pietra não tivesse gostado das jóias. Fora o sorriso feliz e desprentensioso na atendente que a fez sentir asco. Não sabia bem o porquê. Nada pior para um santo do que um pecador feliz. Aquele sorriso inojou a velha senhora que largou sobre o balcão uma corrente de ouro que segurava nas mãos e saiu porta à fora com cara de nojo pior do que a costumaz. A atendente sem entender nada pasmou e, olhando a imagem de dona Pietra, seus jeitos, suas roupas, os vincos na boca, teve uma epifania que se transformou em verbo assim que lhe veio à mente um antigo filme de vampiro que a tinha assustado quando criança: Velha nosferata! Falou baixinho para si mesma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Todo comentário deve ser previamente aprovado pelo meu cachorro, o Bazuca.